Em 1987, os meninos de Ramos, assim como os do Brasil inteiro, não queriam saber de outra coisa além do Álbum da Copa União, com suas figurinhas carimbadas e times completos. Era uma epidemia, e logo todos os meninos do bairro tinham seu exemplar.
Os pequenos acordavam com as galinhas e os raios de sol, buscando os jornaleiros em seus refúgios e gastando as moedas do porquinho em um, dois, três, dez pacotes. É possível dizer que o comércio de figurinhas seguro a economia do Brasil naqueles tempos de fiscais do Sarney.
E os times? Na memória romântica, havia muitos esquadrões. O Flamengo de Zico ,o Atlético Mineiro de Sérgio Araújo, o São Paulo de Müller, o Cruzeiro de Balu, o Coritiba de Milton, o Palmeiras de Jorginho, o Santa Cruz de Birigüi, o Goiás de Eduardo, o Bahia de Bobô e mais tantos outros grandes times – pelo menos na imaginação daqueles garotos.
É fato que todos aqueles onze iniciais fizeram partidas memoráveis nas mesas de futebol de botão. Aquele torneio criou uma grande geração de fãs do futebol brasileiro. Em todos os seus módulos. E aquele álbum, já na época, era o Santo Graal da molecada que queria tê-lo como relíquia e herança.
Um daqueles meninos, de olhos claros e vivos, comprou muitos pacotes de figurinha e trocou outros tantos pelo seu pão com ovo, acondicionado pela família caprichosamente na lancheira da “Corrida Maluca”. Eles nunca passavam fome, mas o dinheiro não sobrava. Gastá-lo com figurinhas era um pouco abusivo, então a criatividade era mais do que necessária.
Outra “fonte de renda” para figurinhas era o jogo de bafo. O moleque era bom no riscado. Assim, mesclando diferentes táticas, foi amealhando as figurinhas e completando os times matreiramente, até que faltava apenas um cromo para completar seu álbum. A temida número 134. Dama, do Corinthians.
Por mais figurinhas que comprasse, ela não vinha . Havia muitos Taffaréis [a número 5], Renatos Gaúchos [a número 93], Robertos Dinamitse [a número 114], e até Gersons Caçapas [a número 157]. Mas o Dama? Tantos pacotinhos abertos e ele nunca aparecia. Até que perto da hora do recreio alguém cochicha. “Mindu tem o Dama”. Ele tremeu, empalideceu. A chance era essa.
Mindu era um garoto dois anos mais velho, gordinho, que parecia o Charlie Brown [o senior]. Logo, o apelido Minduim foi uma incorporação natural, assim como sua abreviação. Mindu era fera no bafo e olhou para o moleque com um sorriso transitando entre o sádico e o desafiador.
Na hora do recreio, um dia chuvoso, eles se encontram. Ao contrário das histórias colegiais clássicas, não havia animosidade, nem ódio. Era um jogo, bafo-bafo, jogo-arte, jogo moleque, jogo bato y me voy. Para Mindu, mais uma partida e apenas o gosto de dificultar a tarefa. Para o moleque, o que estava em jogo era ele – o Dama. E, acredite, isso era muito.
Como dois cowboys se encontrando no saloon, sentaram calados, compenetrados, estudando um o movimento do outro. E durante 13 minutos, várias partidas de bafo foram acontecendo, com vitórias e derrotas de cada lado. Até que Mindu decreta: “O recreio está
acabando, a hora é agora. Vale tudo?”. O moleque não titubeia: “Vale”. Casaram cinco de cada lado, valendo o bolinho.
Mindu começa, vira sete de uma vez. O sinal do recreio toca, estridente. O moleque tem uma chance, capricha e, finalmente, vira a figurinha do Dama. A figurinha nº 134. Nada mais importa, dá o resto das figurinhas para Mindu. Anos depois, Galvão Bueno gritaria que “acabou, é tetra”, mas o guri já estava consagrado, tinha conseguido sua vitória ali, na ponta dos dedos.
Se levanta do local de jogo dando um soco no ar, e, desafortunadamente, esbarra num amigo que bebia refrigerante. O líquido dá um banho na figurinha do Dama, que fica escurecida, esmaecida, suja, melecada. O tempo parou. A cara se transtornou. Um drama.
Os olhos enchem de lágrimas, o moleque ameaça chorar. “Tanto sacrifício pra nada”, murmura. Chuta pedrinha. Mindu chega perto dele e diz: “Fica tranquilo, cara. São as marcas da vitória, você ganhou a figurinha num jogo de bafo, limpo, à vera, quer coisa melhor?”.
O moleque se recompôs, e de certa forma aquela figurinha suja passou a significar ainda mais.Era um troféu. Ainda hoje o Dama é lembrado com carinho. Foi o início de muita coisa. E até hoje aquele cromo, sujo e escurecido, como se fosse enlameado, repousa faceiro e imortal naquele álbum de 1987.
Aquele álbum, que era tão importante quanto o Santo Graal. E talvez seja mesmo, pois ensinou valores, uniu várias pessoas em um ideal comum e traz, até hoje, belas lembranças de tempos que não voltam mais.
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Aproveitando o ensejo, um texto que lembra a importância do jornaleiro na vida das pessoas está aqui
Este texto nasceu de um bate-papo com Rodrigo Borges, Luis A. Lima e Fernando Cesarotti.
Agora pare: Espalhe por aí