Aquele barulho diferente e um sacolejo mais insinuante que a nova passista globeleza. O pneu furou. O pneu, no caso, era de uma caminhonete. Furou, no caso, na margem da BR-116, a poucas horas do pôr-do-sol. Ao olhar para o lado esquerdo, apenas o horizonte. Ao olhar para o lado direito, um povoado simples.
Simples, mas prestativo. Encostando o veículo à procura de um borracheiro. Para um sujeito, cara de camponês, gente da pele curtida pelo sol. Eloquente, se dispõe a ajudar e chama o borracheiro, “o melhor da região”, ele diz. E o profissional chega lá e analisa o que houve. E era um furo grande, e precisava vulcanizar, e demoraria uma hora, talvez duas. Preço combinado, tudo certo. Um vai, outro fica ao lado do veículo.
Carro fechado, naquele pequeno povoado, hora de observar ao redor. Uma parada de ônibus com um pequeno logotipo onde se lia “Beberibe, eu te amo”, para proteger do sol os que precisam se locomover. Ao fim da tarde, ali, isolado, aparentemente não há muito o que fazer. Sinal de telefone, inclusive, não há.
Sem internet ou dados, a sensação é de solidão? Ledo engano. O camponês que buscou o borracheiro se apresenta, conta da formação técnica em mecânica, e que gosta de se embrenhar naquele local que mistura caatinga com litoral com pouquíssimos quilômetros de distância.
Logo chega mais um habitante, que conta que nos tempos dos avós tinha muita onça parda por ali. Sim, suçuaranas. E que hoje sumiram, mas ainda tem um tipo de cervo, algumas jararacas, as cascavéis já estão quase extintas.
E ali, atrás do povoado, tem um açude, onde implantaram tilápias e tucunarés, que se adaptaram bem, mas brigam muito, porque tucunarés são territorialistas e matam as tilápias. E ainda dificultam a pescaria, porque são inteligentes ao extremo.
Há uma igreja no meio da praça. Talvez seja uma capela. A falta de catolicismo impede saber a diferença entre uma e outra, mas é uma construção linda, parece uma casa de bonecas, com um santo em sua entrada. E um espaço para os guris, aproveitando que o sol está terminando o expediente, começarem a armar o futebol.
E um deles, o mais loquaz, olha e diz: “moço, vamos jogar bola?”, tirando um sorriso daqueles do fundo da alma e dando uma vontade quase incontrolável de dobrar as calças, tirar o sapato social e assumir uma das posições daquela pelada.
Ao mesmo tempo, jovens se reúnem na frente do povoado, mas não é nenhum motivo religioso ou festa na cidade. Estão esperando o ônibus para estudar. E não, não é colégio ou supletivo. É faculdade, na cidade ali perto. Alguns fazem direito, outros pedagogia e ali falam dos sonhos e contam que criaram um grupo de whats app. Mas como, se não há sinal telefônico? Rádio, wi-fi, modernidades.
E oferecem a senha da rede para ver os emails e passar recados. Mas não, não é preciso. Estar desconectado naquela hora é excelente. Esquecer o mundo para lembrar de si. E informam que naquela casinha azul vende sorvete artesanal. E o preço é baratinho. E tem de nata goiaba, uma combinação tão deliciosa e improvável quanto caatinga e litoral, com nacos de goiabada em meio à nata. Sabor que fica na memória.
O por do sol se aproxima pelas margens da BR-116, preguiçosamente, mesclando-se com a luz dos faróis dos veículos que rasgam aquela estrada. O tempo passa rápido e já vem o borracheiro com o pneu consertado – “muito trabalho, teve que vulcanizar” .
Enquanto ele coloca o pneu de volta, as despedidas, como se fossem velhos conhecidos. Promessas de um dia passar por lá de novo e comer um tucunaré no restaurante da moça, que por sinal é irmã do borracheiro, que namora com o cara que falou das suçuaranas, e ali todo mundo se conhece.
E naquele momento, conhecer aos outros é reconhecer a si mesmo. Agora entendo a mensagem da parada de ônibus.